Não é que ser possível ser feliz acabe, quando se aprende a sê-lo com bem pouco. Ou que não mais saibamos repetir o gesto que mais prazer nos dá, ou que daria a outrem um prazer irresistível. Não: o tempo nos afina e nos apura: faríamos o gesto com infinda ciência. Não é que passem as pessoas, quando o nosso pouco é feito da passagem delas. Nem é também que ao jovem seja dado o que a mais velhos se recusa. Não. É que os lugares acabam. Ou ainda antes de serem destruídos, as pessoas somem, e não mais voltam onde parecia que elas ou outras voltariam sempre por toda a eternidade. Mas não voltam, desviadas por razões ou por razão nenhuma. É que as maneiras, modos, circunstâncias mudam. Desertas ficam praias que brilhavam não de água ou sol mas solta juventude. As ruas rasgam casas onde leitos já frios e lavados não rangiam mais. E portas encostadas só se abrem sobre a treva que nenhuma sombra aquece. O modo como tínhamos ou víamos, em que com tempo o gesto sempre o mesmo faríamos com ciência refinada e sábia (o mesmo gesto que seria útil, se o modo e a circunstância persistissem), tornou-se sem sentido e sem lugar. Os outros passam, tocam-se, separam-se, exactamente como dantes. Mas aonde e como? Aonde e como? Quando? Em que praias, que ruas, casas, e quais leitos, a que horas do dia ou da noite, não sei. Apenas sei que as circunstâncias mudam e que os lugares acabam. E que a gente não volta ou não repete, e sem razão, o que só por acaso era a razão dos outros. Se, do que vi ou tive uma saudade sinto, feita de raiva e do vazio gélido, não é saudade, não. Mas muito apenas o horror de não saber como se sabe agora o mesmo que aprendi. E a solidão de tudo ser igual doutra maneira. E o medo de que a vida seja isto: um hábito quebrado que se não reata, senão noutros lugares que não conheço.
1 comentário:
Não é que ser possível ser feliz acabe,
quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é também que ao jovem seja dado
o que a mais velhos se recusa. Não.
É que os lugares acabam. Ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem,
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.
É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas solta juventude.
As ruas rasgam casas onde leitos
já frios e lavados não rangiam mais.
E portas encostadas só se abrem sobre
a treva que nenhuma sombra aquece.
O modo como tínhamos ou víamos,
em que com tempo o gesto sempre o mesmo
faríamos com ciência refinada e sábia
(o mesmo gesto que seria útil,
se o modo e a circunstância persistissem),
tornou-se sem sentido e sem lugar.
Os outros passam, tocam-se, separam-se,
exactamente como dantes. Mas
aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas, e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite, não sei.
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.
Se, do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.
- Jorge de Sena -
Ly*
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